Jhonata Fargnolli atende pelo apelido de Firmezinha. O bom humor
que leva este nome reflete também nos vídeos que ele faz para seus canais da
Twitch e YouTube,
nos quais joga Counter-Strike. Contudo, Firmezinha faz isso
de uma forma muito peculiar: somente usando os pés.
Por conta de uma complicação durante a gravidez, oriunda de uma
medicação de risco, ele nasceu sem os braços. Entretanto, isso não foi
suficiente para fazer com que o jovem de 25 anos da cidade de Poá, na região
metropolitana de São Paulo, desistisse da vontade de jogar seus games
favoritos.
As tentativas começaram cedo, na escola, quando os amigos se
enveredaram pelo Counter-Strike e ele
não queria ficar de fora. Foi então que começou a levar os pés até o teclado.
Foi difícil?
“Pode parecer difícil, mas eu
sempre precisei me virar assim, aprendi tudo assim. Tudo bem que teclado e
mouse não são feitos para usar com os pés, mas como eu usei assim desde sempre,
é até bem fácil para mim”, explica Firmezinha.
Em um de seus vídeos, ele explica como faz. Senta encostado em
uma cadeira, leva os pés na altura do teclado em uma escrivaninha, como se
estivesse jogando com as mãos. Na tela, mostra os rápidos movimentos do jogo.
“Eu tenho menos dedos para usar do que uma pessoa com braços, mas também
consigo apertar alguns botões com o mindinho do pé junto com o dedão”, conta.
É possível perceber que, mesmo com essa limitação, ele consegue
fazer movimentos muito ágeis, permitindo que ele jogue o competitivo do jogo,
modalidade em que estão os melhores jogadores.
Firmezinha faz parte de 45,6 milhões de brasileiros que
declararam ter pelo menos um tipo de deficiência, segundo o censo de 2010, último realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso representa 23,9%
da população nacional, quase um quarto do total.
Apesar de tanta gente com algum tipo de deficiência, casos como
o de Firmezinha ainda são raros no universo dos jogos. Isso porque, sobretudo
os consoles ainda carecem de mecanismos de acessibilidade, como leitores de
tela para deficientes visuais.
A luta do cego
Esse é o caso de Gabriel Neves Poli, garoto de 27 anos que é
apaixonado por jogos de luta. Ele ficou conhecido em programas de TV e eventos
da cultura nerd por uma habilidade muito específica: Gabriel é cego e joga seus
games de luta apenas pelo som e vibração no controle.
Com isso, passa apertado quando um novo game é lançado, já que
novas mecânicas entram nas plataformas. Por exemplo, ele ainda não consegue
identificar quando o jogo de luta permite movimentações para o fundo da tela,
motivo pelo qual ele prefere ainda os games com movimentação apenas bidimensional.
Apesar da habilidade, ele ainda se sente limitado no leque de
jogos com que consegue interagir. Isso porque ainda faltam ferramentas no
setor. “Acho que, para começar, seria interessante um leitor de tela”, aponta.
“Acho que é necessário colocar mais efeitos sonoros para uma melhor orientação”
completa. Na opinião dele, uma empresa poderia criar uma versão em áudio
paralela voltada para deficientes visuais, nos quais sons podem ajudar uma
pessoa a se orientar dentro do título.
Há uma série de jogos voltados para esse público, mas que não
agradam a Gabriel. Segundo ele, "as mecânicas costumam ser simples demais,
sem uma trama que atraia. Existem muitos fatores que fazem com que esses jogos
não me agradem, principalmente por não conterem uma história envolvente.
Normalmente, são jogos que falam sobre a deficiência em questão, que você tem
que controlar um personagem assim, e tem um aspecto infantil”, critica.
Exclusão
Apesar de Firmezinha conseguir jogar nos competitivos online,
este não é o mesmo cenário para Gabriel. Ele conta que, durante sua trajetória,
já foi barrado em vários campeonatos. A maioria dizia que não podia
inscrevê-lo, pois o local não tem adaptação para ele. Contudo, mesmo que
Gabriel levasse seus fones e controle próprio (ambos comuns), era impedido de
jogar.
Ele foi disputar sua primeira competição em 2013, em um evento
chamado Batalha dos Games, realizado em São Paulo, em agosto daquele ano. Foi a
primeira vez que uma organização deixou que disputasse a competição junto com
outros jogadores sem deficiência alguma. Era exatamente o que Gabriel queria.
Na época, chegou a emocionar influenciadores que participavam do evento e
ganhar disputas de Tekken Tag Tournament 2,
um dos campeonatos do evento.
Nisso, ele participou de programas de TV e até foi convidado
pela Brasil Game Show a entregar em 2018 um troféu a Katsuhiro Harada, produtor
conhecido por criar a franquia Tekken.
Gabriel enrega prêmio a
Harada durante BGS 2018 (Foto: Divulgação/Brasil Game Show)
Contudo, ele acredita que uma divisão para deficientes no
universo dos esportes eletrônicos pode ajudar a incentivar outras pessoas a
jogarem. “O certo seria fazer igual às paraolimpíadas. Videogame deveria ser
tratado dessa forma. É uma pena que no Brasil não é assim”, lamenta.
Mudanças
Apesar das limitações, sobretudo nos consoles, algumas empresas
estão se movimentando para tornar suas plataformas mais acessíveis. É o caso da Microsoft.
No ano passado, a empresa anunciou o Controle Adaptativo, um periférico para o
Xbox One que sai por US$ 99, cerca de R$ 390, e garante uma série de adaptações
para pessoas com dificuldades motoras.
O preço é bem abaixo dos US$ 500 normalmente necessários para
ter algo parecido e não tão específico para o console, o que garante que o
dispositivo seja acessível não só fisicamente, mas também no bolso.
Controle adaptativo da Microsoft e acessários
(Foto: divulgação/Microsoft)
Segundo, Bruno Motta, gerente de
categoria de Xbox no Brasil, o projeto deve chegar este ano ao Brasil, ainda
sem data de lançamento. “Foram necessários três anos de design, pesquisa e
iteração para dar vida ao Xbox Adaptive Controller. Isso incluiu testar
protótipos com organizações sem fins lucrativos e indivíduos, e o controle não
seria o que é hoje sem o apoio deles ao longo do caminho”, explica.
O projeto nasceu de um hackathon
interno da Microsoft em 2015. O desafio era fazer com que equipes apresentassem
novas ideias, não necessariamente para o cenário de propostas mais inclusivas.
A sugestão de um controle adaptativo nasceu de histórias de veteranos militares
que precisavam de algo diferente do tradicional para jogar. Com isso, a
Microsoft buscou grupos de interesse em acessos de jogos como Warfighter Engaged, que fornece controles personalizados e outras soluções para veteranos
com deficiências e ferimentos graves por conta de guerra.
O produto tem uma série de acessórios
para que jogadores consigam montar o setup mais adequado para suas jogatinas.
“Nosso objetivo com o Xbox Adaptive Controller é acomodar as muitas
necessidades de uso dos gamers com mobilidade limitada e, ao mesmo tempo,
garantir que o controle permaneça acessível e fácil de usar. O Xbox Adaptive
Controller funciona de maneira semelhante a um controle tradicional que os
usuários podem personalizar com uma combinação de botões e direcionais de
parceiros de hardware como Logitech, PDP, AbleNet e RAM Mounts para criar uma
experiência completa de controle que melhor atenda às suas necessidades”,
explica Motta.
De acordo com ele, atualmente a
Microsoft conta com três princípios para o desenvolvimento desse tipo de
periférico. Primeiro, é reconhecer que existem barreiras para jogadores e que é
preciso diminuí-las. No final do ano passado, ela lançou a campanha do seu novo
controle com o mote “Quando todo mundo joga, todos nós ganhamos”.
Isso leva ao segundo princípio de desenvolvimento da empresa:
aprender com a diversidade. “Trabalhamos com comunidades de acessibilidade de
jogos para entender como as pessoas jogam e incorporaram esses aprendizados”,
aponta Motta.
Por fim, o último princípio é expandir os cenários de
possibilidade de utilização. “Nós resolvemos para um, estendemos a muitos.
Projete para pessoas e cenários específicos e estenda esses cenários para mais
pessoas”, explica o gerente.
No caminho dessa filosofia, a empresa também promete desenvolver
nova mecânicas de inclusão em breve. No ano passado mesmo ela lançou o Copilot,
um recurso do Xbox One compatível com o Xbox Adaptive Controller que combina a
entrada de dois controles físicos. A ideia é que ou o jogador utilize os dois
joysticks ao mesmo tempo, ou possa contar com o auxílio de outra pessoa para
jogar em dupla.
“O Microsoft Studios trabalha continuamente para fornecer mais
personalização e escolha de como nossos jogos podem ser jogados. Por exemplo,
Forza Motorsport 7 fornece assistências de condução como freios assistidos e
controle de tração, uma linha de corrida virtual que mostra o caminho mais
rápido ao redor de um circuito e uma linha de corrida amigável, além de novas
assistências como Fricção Assistida que impede que os jogadores que saem da
pista fiquem presos na areia ou na grama. Além disso, Gears of War 4 adicionou
um modo para os jogadores que têm dificuldade em distinguir as cores”, finaliza
Motta.
Enquanto isso, Firmezinha segue com seu teclado e mouse
convencionais, em cima da mesa onde também coloca seus pés. Apesar de todas as
adversidades, ele conta que seu guia é a diversão e felicidade, mesmo quando
recebe comentários maldosos em suas lives e vídeos. “Nas lives, para mim, é só
alegria. Sempre tem um ou outro comentário de gente que fala o que quer, sem
pensar no outro. Mas eu evito ler e, se leio, deixo para lá, não acho que vale
levar a sério. Foco nos muitos recados de gente que manda elogio, que curte e
que apoia me ver jogando”, conta em meio a risadas.
Ele diz, em alto e bom som, com a boa voz que tem, que só quer
incentivar mais pessoas a superarem suas adversidades e pegar no controle,
mesmo que isso seja difícil no começo. No fim, Firmezinha pode ser considerado
realmente o menino com a alegria nos pés.
Fonte: canaltech.com.br
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