quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Sem braços ou cego: a batalha pessoal de deficientes que só querem jogar


Jhonata Fargnolli atende pelo apelido de Firmezinha. O bom humor que leva este nome reflete também nos vídeos que ele faz para seus canais da Twitch e YouTube, nos quais joga Counter-Strike. Contudo, Firmezinha faz isso de uma forma muito peculiar: somente usando os pés.

Por conta de uma complicação durante a gravidez, oriunda de uma medicação de risco, ele nasceu sem os braços. Entretanto, isso não foi suficiente para fazer com que o jovem de 25 anos da cidade de Poá, na região metropolitana de São Paulo, desistisse da vontade de jogar seus games favoritos.

As tentativas começaram cedo, na escola, quando os amigos se enveredaram pelo Counter-Strike e ele não queria ficar de fora. Foi então que começou a levar os pés até o teclado. Foi difícil?
“Pode parecer difícil, mas eu sempre precisei me virar assim, aprendi tudo assim. Tudo bem que teclado e mouse não são feitos para usar com os pés, mas como eu usei assim desde sempre, é até bem fácil para mim”, explica Firmezinha.
Em um de seus vídeos, ele explica como faz. Senta encostado em uma cadeira, leva os pés na altura do teclado em uma escrivaninha, como se estivesse jogando com as mãos. Na tela, mostra os rápidos movimentos do jogo. “Eu tenho menos dedos para usar do que uma pessoa com braços, mas também consigo apertar alguns botões com o mindinho do pé junto com o dedão”, conta.

É possível perceber que, mesmo com essa limitação, ele consegue fazer movimentos muito ágeis, permitindo que ele jogue o competitivo do jogo, modalidade em que estão os melhores jogadores.

Firmezinha faz parte de 45,6 milhões de brasileiros que declararam ter pelo menos um tipo de deficiência, segundo o censo de 2010, último realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso representa 23,9% da população nacional, quase um quarto do total.

Apesar de tanta gente com algum tipo de deficiência, casos como o de Firmezinha ainda são raros no universo dos jogos. Isso porque, sobretudo os consoles ainda carecem de mecanismos de acessibilidade, como leitores de tela para deficientes visuais. 

A luta do cego

Esse é o caso de Gabriel Neves Poli, garoto de 27 anos que é apaixonado por jogos de luta. Ele ficou conhecido em programas de TV e eventos da cultura nerd por uma habilidade muito específica: Gabriel é cego e joga seus games de luta apenas pelo som e vibração no controle.

Com isso, passa apertado quando um novo game é lançado, já que novas mecânicas entram nas plataformas. Por exemplo, ele ainda não consegue identificar quando o jogo de luta permite movimentações para o fundo da tela, motivo pelo qual ele prefere ainda os games com movimentação apenas bidimensional.

Apesar da habilidade, ele ainda se sente limitado no leque de jogos com que consegue interagir. Isso porque ainda faltam ferramentas no setor. “Acho que, para começar, seria interessante um leitor de tela”, aponta. “Acho que é necessário colocar mais efeitos sonoros para uma melhor orientação” completa. Na opinião dele, uma empresa poderia criar uma versão em áudio paralela voltada para deficientes visuais, nos quais sons podem ajudar uma pessoa a se orientar dentro do título.

Há uma série de jogos voltados para esse público, mas que não agradam a Gabriel. Segundo ele, "as mecânicas costumam ser simples demais, sem uma trama que atraia. Existem muitos fatores que fazem com que esses jogos não me agradem, principalmente por não conterem uma história envolvente. Normalmente, são jogos que falam sobre a deficiência em questão, que você tem que controlar um personagem assim, e tem um aspecto infantil”, critica. 

Exclusão

Apesar de Firmezinha conseguir jogar nos competitivos online, este não é o mesmo cenário para Gabriel. Ele conta que, durante sua trajetória, já foi barrado em vários campeonatos. A maioria dizia que não podia inscrevê-lo, pois o local não tem adaptação para ele. Contudo, mesmo que Gabriel levasse seus fones e controle próprio (ambos comuns), era impedido de jogar.

Ele foi disputar sua primeira competição em 2013, em um evento chamado Batalha dos Games, realizado em São Paulo, em agosto daquele ano. Foi a primeira vez que uma organização deixou que disputasse a competição junto com outros jogadores sem deficiência alguma. Era exatamente o que Gabriel queria. Na época, chegou a emocionar influenciadores que participavam do evento e ganhar disputas de Tekken Tag Tournament 2, um dos campeonatos do evento.

Nisso, ele participou de programas de TV e até foi convidado pela Brasil Game Show a entregar em 2018 um troféu a Katsuhiro Harada, produtor conhecido por criar a franquia Tekken.
Gabriel enrega prêmio a Harada durante BGS 2018 (Foto: Divulgação/Brasil Game Show)

Contudo, ele acredita que uma divisão para deficientes no universo dos esportes eletrônicos pode ajudar a incentivar outras pessoas a jogarem. “O certo seria fazer igual às paraolimpíadas. Videogame deveria ser tratado dessa forma. É uma pena que no Brasil não é assim”, lamenta. 

Mudanças

Apesar das limitações, sobretudo nos consoles, algumas empresas estão se movimentando para tornar suas plataformas mais acessíveis. É o caso da Microsoft. No ano passado, a empresa anunciou o Controle Adaptativo, um periférico para o Xbox One que sai por US$ 99, cerca de R$ 390, e garante uma série de adaptações para pessoas com dificuldades motoras.

O preço é bem abaixo dos US$ 500 normalmente necessários para ter algo parecido e não tão específico para o console, o que garante que o dispositivo seja acessível não só fisicamente, mas também no bolso.
Controle adaptativo da Microsoft e acessários (Foto: divulgação/Microsoft)
Segundo, Bruno Motta, gerente de categoria de Xbox no Brasil, o projeto deve chegar este ano ao Brasil, ainda sem data de lançamento. “Foram necessários três anos de design, pesquisa e iteração para dar vida ao Xbox Adaptive Controller. Isso incluiu testar protótipos com organizações sem fins lucrativos e indivíduos, e o controle não seria o que é hoje sem o apoio deles ao longo do caminho”, explica. 

O projeto nasceu de um hackathon interno da Microsoft em 2015. O desafio era fazer com que equipes apresentassem novas ideias, não necessariamente para o cenário de propostas mais inclusivas. A sugestão de um controle adaptativo nasceu de histórias de veteranos militares que precisavam de algo diferente do tradicional para jogar. Com isso, a Microsoft buscou grupos de interesse em acessos de jogos como Warfighter Engaged, que fornece controles personalizados e outras soluções para veteranos com deficiências e ferimentos graves por conta de guerra.

O produto tem uma série de acessórios para que jogadores consigam montar o setup mais adequado para suas jogatinas. “Nosso objetivo com o Xbox Adaptive Controller é acomodar as muitas necessidades de uso dos gamers com mobilidade limitada e, ao mesmo tempo, garantir que o controle permaneça acessível e fácil de usar. O Xbox Adaptive Controller funciona de maneira semelhante a um controle tradicional que os usuários podem personalizar com uma combinação de botões e direcionais de parceiros de hardware como Logitech, PDP, AbleNet e RAM Mounts para criar uma experiência completa de controle que melhor atenda às suas necessidades”, explica Motta.

De acordo com ele, atualmente a Microsoft conta com três princípios para o desenvolvimento desse tipo de periférico. Primeiro, é reconhecer que existem barreiras para jogadores e que é preciso diminuí-las. No final do ano passado, ela lançou a campanha do seu novo controle com o mote “Quando todo mundo joga, todos nós ganhamos”.


Vídeo incorporado


Isso leva ao segundo princípio de desenvolvimento da empresa: aprender com a diversidade. “Trabalhamos com comunidades de acessibilidade de jogos para entender como as pessoas jogam e incorporaram esses aprendizados”, aponta Motta.

Por fim, o último princípio é expandir os cenários de possibilidade de utilização. “Nós resolvemos para um, estendemos a muitos. Projete para pessoas e cenários específicos e estenda esses cenários para mais pessoas”, explica o gerente.

No caminho dessa filosofia, a empresa também promete desenvolver nova mecânicas de inclusão em breve. No ano passado mesmo ela lançou o Copilot, um recurso do Xbox One compatível com o Xbox Adaptive Controller que combina a entrada de dois controles físicos. A ideia é que ou o jogador utilize os dois joysticks ao mesmo tempo, ou possa contar com o auxílio de outra pessoa para jogar em dupla.

“O Microsoft Studios trabalha continuamente para fornecer mais personalização e escolha de como nossos jogos podem ser jogados. Por exemplo, Forza Motorsport 7 fornece assistências de condução como freios assistidos e controle de tração, uma linha de corrida virtual que mostra o caminho mais rápido ao redor de um circuito e uma linha de corrida amigável, além de novas assistências como Fricção Assistida que impede que os jogadores que saem da pista fiquem presos na areia ou na grama. Além disso, Gears of War 4 adicionou um modo para os jogadores que têm dificuldade em distinguir as cores”, finaliza Motta.

Enquanto isso, Firmezinha segue com seu teclado e mouse convencionais, em cima da mesa onde também coloca seus pés. Apesar de todas as adversidades, ele conta que seu guia é a diversão e felicidade, mesmo quando recebe comentários maldosos em suas lives e vídeos. “Nas lives, para mim, é só alegria. Sempre tem um ou outro comentário de gente que fala o que quer, sem pensar no outro. Mas eu evito ler e, se leio, deixo para lá, não acho que vale levar a sério. Foco nos muitos recados de gente que manda elogio, que curte e que apoia me ver jogando”, conta em meio a risadas.

Ele diz, em alto e bom som, com a boa voz que tem, que só quer incentivar mais pessoas a superarem suas adversidades e pegar no controle, mesmo que isso seja difícil no começo. No fim, Firmezinha pode ser considerado realmente o menino com a alegria nos pés.

Fonte: canaltech.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário