Quando se fala em diversidade e
inclusão nos videogames, é normal pensar logo de cara em mulheres empoderadas
e/ou como protagonistas e, porque não, nas incontáveis polêmicas sobre esse
tema. Mas desta vez não vamos destacar escândalos, mas sim enaltecer como os
videogames, em especial no Brasil, ainda estão engatinhando quando o assunto é
inclusão e representatividade em geral.
Vale, antes de mais nada, ressaltar o
que são essas palavrinhas, pois parece que quanto mais se fala delas, menos
elas parecem fazer sentido para alguns — especialmente para aqueles que
realmente precisam entendê-las. Diversidade, representatividade e inclusão
possuem significados brevemente diferentes, mas todas convergem para um mesmo
fim.
Esse aspecto em comum é, de forma bem
simples, dar mais destaque para toda a pluralidade de pessoas que existem no
mundo e suas culturas, gêneros e não-gêneros, orientações sexuais, raças e/ou
etnias e todo e qualquer outro aspecto de sua personalidade e forma de vida;
saindo dos padrões estabelecidos desde sempre pela sociedade e fazendo, de
forma geral, com que todos possam se sentir representados em uma mídia.
Da esquerda
pra direita: Osvaldo Isaka, Tainá Félix, Mariana Souto, Guilherme Pinho Meneses
e Cris Bartis. (Imagem: Jessica Pinheiro/Canaltech)
Essa é uma
visão bem resumida e básica do que as palavras representam e, quando se fala de
mídia (isto é: filmes, séries, quadrinhos, animes, mangás, games, etc) as indústrias
e seus respectivos públicos ainda parecem estar engatinhando nesses assuntos. A
base para tudo é a empatia e esse sentimento é constantemente ignorado pelas
pessoas.
Mas vamos
afunilar um pouco mais o tema e focar em videogames. Quando falamos dessa mídia
em específico e puxamos o gancho para falar de diversidade e de
representatividade, é comum pensar em como personagens femininas aos poucos
(bem aos poucos mesmo) têm ganhado mais visibilidade e importância e,
principalmente, sendo menos objetificadas e sexualizadas. Claro, essas práticas
ainda existem, mas a passos de formiga a indústria parece estar mudando.
Só em
2017, pelo menos sete dos melhores jogos do ano ganharam protagonistas
femininas em destaque em suas capas e, somado a esses, aproximadamente 10 dos
mais consagrados games do mesmo ano tinham personagens mulheres importantes na
narrativa. Em questão de bastidores e desenvolvimento, há registros de 21% de
mulheres trabalhando em projetos de games e pelo menos 5% de transgêneros e
andrógenos.
Florescer
(Imagem: Divulgação/PugCorn)
E com essa
brecha que as personagens femininas e as desenvolvedoras começaram a ganhar
recentemente, podemos finalmente abrir a portela para os demais: onde está o
público LGBTQ+? Indo além e tocando em outra questão um pouco mais enraizada
nas origens brasileiras: onde estão os índios? Se mulheres na indústria parecem
ser uma joia rara de se achar, pessoas representando um desses dois grupos
então nem se fala.
Huni Kuin,
Nova Califórnia e Florescer
Os jogos
nacionais estão ganhando cada vez mais vibisibilidade, o que é ótimo, ainda que
isso seja algo pequeno se compararmos ao que os games AAA de publishers de
renome geralmente recebem. Todavia, durante a Campus Party 2019, o Sesc SP
abriu um espaço muito bacana para oficinas e, em especial, para desenvolvedores
independentes mostrarem seus trabalhos.
Não apenas
isso, eles também falaram com o público e mostraram suas visões, além de
compartilharem suas histórias em um bate-papo mais do que especial. Osvaldo
Isaka veio falar de Huni Kuin, enquanto que Mariana Souto
representou Florescer e Tainá Félix cuidou de A Nova
Califórnia — todos games brasileiros com enredos enraizados na
história, no cotidiano e na literatura do Brasil.
Durante o bate-papo na Campus Party
2019, mediado por Cris Bartis do podcast Mamilos, os
três desenvolvedores comentaram sobre a criação de seus jogos e compartilharam
opiniões sobre as temáticas que eles abordaram em cada uma de suas criações.
Uma das principais questões levantadas por Tainá, inclusive, e que tem
totalmente a ver com este texto, é a visibilidade.
"A sociedade é múltipla e
diversa, mas quem são as pessoas que têm a oportunidade de estarem no meio da
midia produzindo conteúdo?", questionou a desenvolvedora do game A Nova Califórnia, que tem como base um
conto de Lima Barreto e aborda, sobretudo, o preconceito contra negros. Já
Mariana ressaltou que mais de 50% dos jogadores no Brasil são mulheres, mas, ao
mesmo tempo, o nosso país é o que mais elimina transexuais, de acordo com dados
da ONG Transgender Europe.
O título em que ela trabalhou, Florescer, foi o TCC da faculdade feito
por ela e outros estudantes da Anhembi Morumbi e tem como base uma adolescente
transexual vivendo seu cotidiano. "Por que os jogos comerciais não tratam de
representatividade?", a jovem levantou a questão, uma vez que o seu jogo
recebeu auxílio da Casa Florescer, que ajuda e abriga mulheres trans. Já Isaka,
que se declarou um verdadeiro nerd, foi acompanhado do amigo Guilherme Pinho
Meneses para a Campus Party 2019.
A Nova
Califórnia (Imagem: Divulgação/Game e Arte)
Ele contou
que conheceu Guilherme a beira do Rio Jordão e, ao lado de outras pessoas da
região, entre estes jovens e velhos, se juntou ao antropólogo e game designer
para contar histórias e participar do projeto de jogo com o objetivo de
fortalecer as origens de sua aldeia Centro de Memórias (composta de outras
grandes aldeias) e compartilhá-las com o resto do mundo gratuitamente.
Além da
representatividade e das temáticas abordadas em seus jogos, outro ponto
interessante do bate-papo entre os desenvolvedores foi o modelo de produção
seguido atualmente pela indústria, e inclusive pelos brasileiros — ainda que
essa base não exatamente sirva para o modo como vivemos por aqui.
Isso
porque lá fora se criam jogos já almejando o prêmio de "Jogo do Ano"
e esse pensamento se reproduz no Brasil. Entretanto, os jovens desenvolvedores
independentes esquecem que o mercado brasileiro de jogos, em termos de criação
e visibilidade, ainda está engatinhando. A solução, segundo os desenvolvedores
no palco, contudo, poderia ser criar um modelo de produção e distribuição com
regras brasileiras, de uma forma que funcionasse dentro da nossa realidade.
Huni Kuin
(Imagem: Divulgação/Beya Xinã Bena)
Responsabilidade
histórica
O
jogo Florescer nasceu a partir de uma proposta da faculdade em
que Mariana estudava: de que os alunos trabalhassem com alguma ONG. O grupo
dela decidiu procurar a Casa Florescer para seu projeto acadêmico de conclusão
de curso. O local, por sua vez, é conhecido por acolher mulheres transexuais e
travestis — uma causa com a qual o time de desenvolvimento do game também se
preocupa. Mariana também nos contou que o jogo foi desenvolvido junto com as
meninas do abrigo e que elas ajudaram em todo o processo:
"Se
um grupo de desenvolvedores — qualquer um, no caso o nosso — está fazendo um
jogo sobre mulheres trans; [é] preciso ter mulheres trans acompanhando esse
projeto e dando suas opiniões para evitar que a gente, que somos cis, caia em
armadilhas de criar personagens estereotipados, de assumir coisas que a gente
acha que é verdade, mas não sabemos se é porque não vivemos aquilo... Então foi
muito importante esse apoio e compartilhamento das histórias delas".
Em Florescer,
os jogadores acompanham história de Bia, uma adolescente trans vivendo seu
dia-a-dia. Mariana inclusive nos revelou que o game originalmente teria mais
personagens, pelo menos cinco outras transexuais inspiradas nas meninas da Casa
Florescer, cada qual com sua própria trajetória. Porém, como era um projeto de
faculdade e havia um prazo para ele ser entregue, o time de desenvolvimento
optou por focar em uma protagonista apenas, a Bia, e usar pontos em comum das
histórias das pessoas abrigadas, para guiar a narrativa dela no jogo.
Florescer (Imagem:
Divulgação/PugCorn)
Em termos
de mecânicas, Florescer conta o cotidiano da Bia, uma
adolescente; então, para Mariana, não faria sentido mostrar um jogo de ação e
aventura. Ao invés disso, o time de desenvolvimento optou por desenvolver o
game com mecânicas de exploração e contemplação, que mostra como é a vida da
protagonista para o jogador e as dificuldades que ela enfrenta todos os dias.
"A
gente não começou a história já falando que a Bia é uma adolescente trans
porque se a pessoa tem algum preconceito, talvez ela não fosse querer jogar o
game; então tivemos esse controle de irmos jogando as informações sobre a Bia
aos poucos", revelou Mariana quando comentou sobre o que foi feito para
instigar a curiosidade dos jogadores — o que é particularmente interessante,
tendo em vista de que, antes de ser trans ou ser parte de qualquer outro grupo,
todos são pessoas, então a abordagem de simpatização com a personagem foi mais
do que perfeita. "É isso que o mundo precisa entender: essas pessoas não
são trans, elas são pessoas", ressaltou a desenvolvedora.
Já A
Nova Califórnia, nomeado a partir de uma obra de Lima Barreto, levou alguns
anos em seu desenvolvimento até ser concluído. De acordo com Tainá, ela e seu
time queriam repassar a representatividade mostrada na publicação, mas com
outra linguagem, ou seja, através dos videogames, que é uma mídia bastante
popular hoje em dia.
"O nosso primeiro objetivo como
desenvolvedores foi: 'construir uma experiência estética jogável do conto A
Nova Califórnia', ou seja, fazer com que as pessoas pudessem vivenciar a
história que é narrada pelos dedos de Lima Barreto. Era o objetivo [primário]
fazer com que essa experiência pudesse ser vivida", a desenvolvedora
complementou.
Para tanto, o time de desenvolvimento
fez uma pesquisa histórica sobre o momento que Lima Barreto escreveu o conto,
levando em conta diferentes camadas de artes (visual, música, etc.). Assim, a
inserção de móveis do início do século XX ou canções da Chiquinha Gonzaga e
Ernesto Nazaré, por exemplo, foram extremamente necessárias, pois são parte da
época (e da vida) do autor — muito embora esses elementos sejam colocados de
maneira natural e lúdica.
Raízes brasileiras
Além dessas pesquisas e o cuidado em
repassar com fidelidade à obra a mensagem do autor — detalhes muito importantes
para o desenvolvimento das desigualdades entre negros e não-negros no Brasil —,
vale ressaltar que A Nova
Califórnia foi desenvolvido em RPG Maker e baseado em
jogabilidade de adventures. Porém, segundo Tainá, quando o game ainda era um
protótipo, a equipe de desenvolvimento pensou em utilizar batalhas épicas na
narrativa.
A Nova
Califórnia (Imagem: Divulgação/Game e Arte)
Isso não
faria muito sentido, todavia, ainda mais levando em conta que a base eram as
histórias de Lima Barreto. Assim sendo, o time focou exclusivamente na
narrativa. Tainá, inclusive, comentou sobre uma youtuber que testou o game e,
curiosamente, interpretou que o gameplay girava em torno de "coletar
fofocas" — o que cai muito bem para a proposta da história que eles
queriam contar, diga-se de passagem.
Segundo
Tainá, A Nova Califórnia é também muito pautado na
subjetividade. Ela mencionou uma experiência que teve com teatro e
representação para elaborar esse comentário. "Fazer peças com finais
abertos... Considerando essa tradição, quando a gente foi criar o Nova
Califórnia, não queríamos dizer para o público uma mensagem clara como 'Olha,
ser ganancioso é ruim!', 'Olha, você vai se dar mal!'; porque inclusive, não é
isso que o Lima Barreto faz no conto. Ele deixa absolutamente aberto o que
acontece com o personagem mais ganancioso da história, que é o jogador",
explicou a desenvolvedora.
"Então,
se o Lima Barreto, em sua sabedoria literária, fez isso, por que eu, uma reles
mortal e admiradora de seu trabalho não faria o mesmo com o jogo que conta essa
história?", brincou. Todo esse cuidado foi tomado para conceder liberdade
ao jogador, até mesmo em suas escolhas de respostas — as quais não
necessariamente estão certas ou erradas na programação do jogo. Ao final,
espera-se que ele mesmo reflita sobre suas atitudes (relacionadas a
preconceitos) ao longo da jogatina após experimentar como era ser um negro em
meados de 1900, período de pós-abolição da escravatura.
Huni Kuin
(Imagem: Divulgação/Beya Xinã Bena)
"A
gente se arrisca [em uma narrativa subjetiva] porque o Lima Barreto se
arriscou, sendo ele um autor negro e sabendo da condição e da visibilidade que
ele tinha na literatura naquele momento ou não, tendo de contemporâneo um
Machado de Assis, por exemplo; se colocando nesse lugar e, [ao] contar uma
história, não tomar partido nela, mas deixando que o público e seus leitores
tomem as conclusões possíveis sobre sua mensagem", explicou Tainá.
Quanto a Huni
Kuin: Os Caminhos da Jiboia, Isaka e Guilherme nos revelaram que foram
quatro anos para finalizar o jogo e que ele recebeu este nome por causa do
povos da tribo Huni Kuin, ou Kaxinawá, que habitam, dentre outras áreas
latino-americanas, o estado do Acre e o sul do Amazonas, abarcando
especificamente as regiões do Alto Juruá e Purus e o Vale do Javari.
O objetivo
por trás da criação do título era o de fortalecer os jogadores com
conhecimentos dos Huni Kuin, já que o jogo leva lendas e histórias do povo
Kaxinawá em sua narrativa e, mesmo sendo totalmente em 2D, possui desenhos
feitos pelas próprias crianças da tribo. O game já está, inclusive, disponível
para ser jogado e pode ser baixado gratuitamente. Ele é narrado no idioma hatxã
kuĩ e legendado em português, inglês, espanhol e, claro, na língua nativa dos
indígenas que deram origem ao jogo.
De acordo com Guilherme, o combinado
entre ele e os demais desenvolvedores foi que o jogo fosse aberto e gratuito
para que quem o adquirisse pudesse acessar as histórias que o jogo conta.
"Nós ficamos mais de quatro meses lá com os Huni Kuin, foram quatro
viagens e o Isaka também veio em outras viagens para São Paulo para trabalhar
na narração e em outros assuntos de estúdio", revelou o antropólogo sobre
o desenvolvimento.
Material infinito
Os indígenas da tribo Kaxinawá eram,
segundo Guilherme, o "controle de qualidade" do jogo. Isso porque, de
acordo com Isaka, foram escolhidas cinco histórias das origens da tribo para
serem colocadas dentro do jogo. O objetivo, afinal, era fortalecer o
conhecimento acerca dos Kaxinawá para que as pessoas possam conhecer os mitos,
os contos e tudo mais. "A cultura Huni Kuin é infinita, tem muito
material", comenta Guilherme, de modo que os jogadores vão levar cerca de
três horas para experimentar tudo que o game tem a oferecer.
"Cada
história é um jogo por si só", acrescenta.
Em Huni Kuin: Os
Caminhos da Jiboia, os jogadores contemplam as histórias da tribo
que dá nome ao game. Neste ponto, Guilherme, por sua vez, ressaltou as
diferentes concepções que os indígenas têm do mundo e da vida, além da bagagem
histórico-cultural que eles carregam em suas raízes — e como ele trabalhou para
moldar essa cosmologia de modo a inseri-la em forma de mecânicas no jogo.
Da esquerda
pra direita: Osvaldo Isaka, Tainá Félix, Mariana Souto, Guilherme Pinho Meneses
e Cris Bartis (Imagem: Jessica Pinheiro/Canaltech)
O
antropólogo citou como exemplo um conceito da tribo conhecido como Yuxibu, que
basicamente são grandes espíritos que regem elementos do cotidianos (o céu, a
Lua, as estrelas, a floresta, o Sol, etc.). Para o game, isso foi adaptado da
seguinte forma: se o personagem caçar muito e começar a matar muitos animais
e/ou plantas, os Yuxibu começam a ficar bravos e o jogo, automaticamente, se
torna mais difícil, com animais atacando mais ferozmente e a carne dos bichos
que foram caçados começando a apodrecer, dentre outras punições.
Este tipo
de "material infinito" disponibilizado pelas crianças e pelos anciões
dos Kaxinawá nos faz pensar, automaticamente, na quantidade e pluralidade de
lendas, mitos e histórias que o Brasil carrega em suas costas; e que já foram
perdidos e nunca registrados de alguma forma. Isso tudo considerando que o
nosso país é um dos que mais possui diversidade em absolutamente tudo que o
rodeia.
É um
desperdício pensar que as pessoas que habitam estas terras ainda sejam tão
fechadas a novas ideias e a abraçar a empatia para com o próximo, esteja ele
ainda vivo ou não. Que mais jogos como Florescer, A Nova
Califórnia e Huni Kuin apareçam para mudar um pouco a
mentalidade e o comportamento do jogador brasileiro — e futuramente, porque não
dizer, da indústria de videogames como um todo.
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